domingo, 21 de outubro de 2018

Cantiga de Babá






Eu queria pentear o menino
Como os anjinhos de caracóis.
Mas ele quer cortar o cabelo,
Porque é pescador e precisa de anzóis.

Eu queria calçar o menino
Com umas botinhas de cetim.
Mas ele diz que agora é sapinho
E mora nas águas do jardim.

Eu queria dar ao menino
Uma casinhas de arame e algodão.
Mas ele diz que não pode ser anjo,
Pois todos já sabem quem ele é índio e leão.

(Este menino está sempre brincando,
Dizendo-me coisas assim.
Mas eu bem sei que ele é um anjo escondido,
Um anjo que troça de mim.)


Cantiga da babá - Cecília Meireles

domingo, 23 de setembro de 2018

Guarde antigos perfumes


Envolta a suspiros sinto-me em outro lugar. Não quero velhos rostos, vozes e toda lembrança vã!  Já redesenhei outros lugares. Tapem meus ouvidos, vedem meus olhos, guardem todos os antigos perfumes. Quero o lado b, o outro lado do cercado, o avesso de toda vida que vivi impiedosamente sem mim mesma, chega de lenços ou bálsamo. Venha me ver soluçando de alegria.









terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Não olhe para trás com rancor!








Nunca senti medo ou vontade de girar o botão do tempo, mas sem que eu percebesse, o ano de 1996 entrou pela janela, sentou-se ao meu lado e ao som de “Don't Look Back In Anger” do recente “Supersonic", documentário sobre a banda OASIS, recebi aquela que fui com meus olhos estremecidos de amor e compaixão. 





No meio ao caos e fúria dos irmãos Gallagher, reencontrei um recanto poético. Um elo entre os tempos começou a desfilar diante do meus olhos a cada composição do Noel. 1996 surgiu e trouxe-me nos braços aos 26 anos. Ela sorria e me chamava para segurar uma garrafa de vinho e cantarolar refrões musicais que energicamente exaltavam a vida e a liberdade. Impotente, toquei suas mãos e pulei no abismo entre nós. Entreguei a ela minhas mãos suadas e meus olhos cansados. Embalada pelo medo e movida pelo que me restou de coragem, embarquei na viagem em busca de vestígios do que fui.

Vozes e imagens surgiam de todas direções. Um vento  balançava roupas alvejadas em um varal de arame farpado, em um muro amarelado pelo tempo,vi uma menina olhando para o céu. Um tal cometa Harley ameaçava cair... Alguns garotos passavam livres, suados e alegres, senti cheiro de bolo, vi um vendedor de espanador, ouvi buzina de fábrica, pedreiros e empregadas domésticas passavam com seus fortes perfumes. Uma música do Sitio do Pica Pau vinha de uma casa com flores e grama verdinha. Aquela era minha casa! Voltei meus olhos para a menina imóvel com seus cabelos finos e curtos com uma franja que cobria-lhe os olhos castanhos, acesos e nitidamente inocentes. Passei a olhar para o céu e ali ficamos por alguns segundos, esperando o famigerado cometa. Sem minha permissão,voltei do passado mais vivo que o meu morno e solitário presente. 

Entre os portais, descobri que há apenas vagões de um trem e que eles crescem com o passar do tempo. Guardei minhas passagens e agora posso visitá-los sempre que minha alma involuntariamente desejar retornar.

Nada irá queimar meu coração!








Suerda Morais
Em algum domingo de 2017

CORUJAS E PITANGAS